Vi-te descer, ao fundo, a rua,
imaginando que vinhas na minha direcção, mesmo sem saberes. Caminhavas como
um anjo, como se arrastasses os pés pelo ar, como se cada passo fosse algo
divino. Apenas eu te poderia apreciar da maneira que o fazia. O teu corpo
transbordava sedução e o teu olhar era incapaz de o negar. Aproximavas-te
lentamente, como se fosses ao encontro de algo igualmente divino, enquanto eu
te via de uma varanda, pedindo em silêncio que me olhasses. Quando o fizeste, não
acreditei.
Vi-te sorrir, algo que
transformou aquela divindade num pecado. Retribui, contribuindo para a desgraça
dos homens, tornando a terra num inferno criado por nós. Este jogo apenas
havia começado. Soletras-te umas palavras silenciosas, que confesso que não entendi,
mas cada movimento dos teus lábios, pareciam cada vez mais perto de me tocar.
As ruas estavam desertas, apenas um carro passava de vez em quando. O céu escurecia
e a chuva parecia querer acompanhar-nos neste jogo de olhares, sorrisos e
palavras silenciosas, como um acto terrorista.
Descaradamente, sem medo do
incerto, sai da varanda, desci as escadas, e apenas parei ao pé da porta onde
tu não me esperavas encontrar. Arranjaste a tua camisa, num gesto ofegante e
ansioso. A minha saia até aos pés, era levada pelo vento, apenas descobrindo-me
os pés. Olhavas-me de alto a baixo como se o anjo agora fosse eu, mas acredito
que me virias mais como um pecado, do que como algo divino. Eu tinha a certeza
que eras um pecado na minha vida.
Aproximaste-te, com passos
incertos, olhando para ambos os lados daquela rua deserta, procurando aquilo
que já tinhas encontrado. Os teus olhos pareciam cada vez mais hipnotizados.
Olhavas para um vazio dentro dos meus olhos, e eu, de igual modo, não conseguia
ver nada nos teus. Estendeste-me a mão, com medo que eu desaparecesse, sem antes teres esse prazer. Lentamente passaste-me a mão pelo rosto, enquanto
eu te olhava, focada em algo irreal, agora que os teus olhos seguiam as tuas
mãos. Paras-te quando encontras-te a minha mão, que bruscamente apertei contra a tua,
tornando aquele pecado cada vez maior.
Os nossos olhos cada vez mais
juntos, mas a tua atenção focou-se nos meus lábios, que lentamente se abriam,
como se obedecessem a uma ordem tua, como que imitando os teus lábios que também
se começavam a abrir. Quando ambos os lábios se tocaram, pequenas gotas de
chuva começaram a cair, como se o mundo divino chorasse. Os nossos olhos
tornaram-se janelas fechadas para o mundo, completamente abertas para o nosso
interior. As nossas bocas ficavam cada vez mais juntas e mais ofegantes, como
se o beijo fosse algo desconhecido de ambos. Lentamente, pouco a pouco, os
beijos intensificaram-se e como numa coreografia, todo o teu corpo se movia,
tocando-me nas costas, no cabelo, querendo sentir tudo de uma só vez. Como
um belo pecado, aproximei mais a tua cabeça, junto á minha, e cada vez mais as
nossas bocas pareciam uma só.
A chuva teimava em cair e nós
teimávamos em continuar aquele beijo doentio e frenético. Poderíamos ouvir a chuva, a água
que começava a correr pela rua fora, os poucos carros que passavam e apitavam,
isto, caso deixássemo-nos de beijar... mas não deixamos. Apesar das gotas serem
cada vez mais, mais pesadas e frias, os nossos corpos permaneciam quentes. E
incapazes de se separarem, apesar de apenas estarem ligados por um beijo.
Como uma trovoada ou um bom
pecado, deixei-te abruptamente, sussurrando algo no teu ouvido, como um
murmúrio dos infernos, e sorrindo misticamente. Comecei a correr dali, como se
levasse comigo a tua alma, que agora não a poderias reaver e tu nada fizeste
por isso.
Ana de Quina (2006)
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