sábado, novembro 29, 2014

Beijo do Pecado

Vi-te descer, ao fundo, a rua, imaginando que vinhas na minha direcção, mesmo sem saberes. Caminhavas como um anjo, como se arrastasses os pés pelo ar, como se cada passo fosse algo divino. Apenas eu te poderia apreciar da maneira que o fazia. O teu corpo transbordava sedução e o teu olhar era incapaz de o negar. Aproximavas-te lentamente, como se fosses ao encontro de algo igualmente divino, enquanto eu te via de uma varanda, pedindo em silêncio que me olhasses. Quando o fizeste, não acreditei.

Vi-te sorrir, algo que transformou aquela divindade num pecado. Retribui, contribuindo para a desgraça dos homens, tornando a terra num inferno criado por nós. Este jogo apenas havia começado. Soletras-te umas palavras silenciosas, que confesso que não entendi, mas cada movimento dos teus lábios, pareciam cada vez mais perto de me tocar. As ruas estavam desertas, apenas um carro passava de vez em quando. O céu escurecia e a chuva parecia querer acompanhar-nos neste jogo de olhares, sorrisos e palavras silenciosas, como um acto terrorista.

Descaradamente, sem medo do incerto, sai da varanda, desci as escadas, e apenas parei ao pé da porta onde tu não me esperavas encontrar. Arranjaste a tua camisa, num gesto ofegante e ansioso. A minha saia até aos pés, era levada pelo vento, apenas descobrindo-me os pés. Olhavas-me de alto a baixo como se o anjo agora fosse eu, mas acredito que me virias mais como um pecado, do que como algo divino. Eu tinha a certeza que eras um pecado na minha vida.

Aproximaste-te, com passos incertos, olhando para ambos os lados daquela rua deserta, procurando aquilo que já tinhas encontrado. Os teus olhos pareciam cada vez mais hipnotizados. Olhavas para um vazio dentro dos meus olhos, e eu, de igual modo, não conseguia ver nada nos teus. Estendeste-me a mão, com medo que eu desaparecesse, sem antes teres esse prazer. Lentamente passaste-me a mão pelo rosto, enquanto eu te olhava, focada em algo irreal, agora que os teus olhos seguiam as tuas mãos. Paras-te quando encontras-te a minha mão, que bruscamente apertei contra a tua, tornando aquele pecado cada vez maior.

Os nossos olhos cada vez mais juntos, mas a tua atenção focou-se nos meus lábios, que lentamente se abriam, como se obedecessem a uma ordem tua, como que imitando os teus lábios que também se começavam a abrir. Quando ambos os lábios se tocaram, pequenas gotas de chuva começaram a cair, como se o mundo divino chorasse. Os nossos olhos tornaram-se janelas fechadas para o mundo, completamente abertas para o nosso interior. As nossas bocas ficavam cada vez mais juntas e mais ofegantes, como se o beijo fosse algo desconhecido de ambos. Lentamente, pouco a pouco, os beijos intensificaram-se e como numa coreografia, todo o teu corpo se movia, tocando-me nas costas, no cabelo, querendo sentir tudo de uma só vez. Como um belo pecado, aproximei mais a tua cabeça, junto á minha, e cada vez mais as nossas bocas pareciam uma só.

A chuva teimava em cair e nós teimávamos em continuar aquele beijo doentio e frenético. Poderíamos ouvir a chuva, a água que começava a correr pela rua fora, os poucos carros que passavam e apitavam, isto, caso deixássemo-nos de beijar... mas não deixamos. Apesar das gotas serem cada vez mais, mais pesadas e frias, os nossos corpos permaneciam quentes. E incapazes de se separarem, apesar de apenas estarem ligados por um beijo.

Como uma trovoada ou um bom pecado, deixei-te abruptamente, sussurrando algo no teu ouvido, como um murmúrio dos infernos, e sorrindo misticamente. Comecei a correr dali, como se levasse comigo a tua alma, que agora não a poderias reaver e tu nada fizeste por isso.


 Ana de Quina (2006)

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