Hoje mesmo que quisesse não conseguiria escrever, porque o cérebro parece ter tirado o dia e a noite para estar completamente off, mas à falta de imaginação e vontade, aqui fica um excerto de um dos meus autores favoritos, Pedro Paixão e um dos seus textos que acabo sempre por ler vezes sem conta cada vez que pego num dos seus livros: Fica Querida com um beijo que não passe.
"Não devia ter-te deixado entrar assim na
minha vida, não devia. Mas não pude. Entraste em mim num assalto e foi doce
resistir. Agora quero expulsar-te, e não consigo. Perdi-me em ti, por descuido.
Agora não me encontro sem ti.
De
tudo nada ficou como prova: nem uma linha com a tua caligrafia, nem uma
fotografia em que estivéssemos os dois, nem um dos teus lenços favoritos. Por
vezes julgo, enlouquecida, que nem sequer exististe. Fecho os olhos e faço por
fixar uma só imagem na memória, um só movimento curto dos teus braços, um
sorriso na tua cara, uma única palavra, boa ou má, e não consigo. A imagem
escorrega, desfaz-se no centro ou nos cantos. Quanto mais tento, mais me
escapa. Volto atrás e recomeço. O que me vem não é o mesmo. Não quero abrir os
olhos para não ter que não te encontrar.
Quando
me encontraste não precisava de ti. Já tinha ouvido dizer o teu nome e não
fiquei curiosa. Quando me telefonaste disse-te que sim, como diria que não, por
tédio. Como tu conheci muitos. (…) Conhecia o teu género e não me agradava. Nem
sequer chegavas a ser bonito ou frágil. Estavas cheio de ti. Quando chegou o
fim do jantar digo-te que o que senti foi alívio.
Telefono-te
e tu não atendes. Sei que estás lá. Sei ainda que sabes que sou eu. E não
atendes. Telefono a meio da noite para te acordar, para te obrigar a pensar em mim. Mal ou bem, é-me
indiferente. Sim, chama-me nomes: sou eu.
Tudo
foi por acaso. Achei ridícula a tua insistência ao telefone. (…) Eu chorava,
por razoes que nunca saberás, que nem sequer quiseste saber. Agarraste-me os
braços, armado em
protector. Nem sequer ouvia o que me dizias quando te
deitaste ao meu lado no sofá. Ouvia só o som da tua voz, esse sim, confesso a
encantar-me. (…) Não era o teu nome que eu sussurrava entre dentes enquanto
julgavas que me tinhas.
Deixaste-me
de uma maneira tão cobarde. Na véspera, depois de uma discussão horrível,
voltaste a prometer-me tudo. Sabia que mentias. (…) Quando voltei soube que
tinhas dito a verdade quando repetias que não me merecias. Sobre a cama um
postal com uma frase escrita à máquina: “Fica querida com um beijo que não
passe”. Só te vou perdoar quando te esquecer.
Não
sei quanto tempo demoraste a perceber que estares ali comigo não era uma
vitória tua e que usava da companhia do teu corpo e dos seus préstimos para
outras coisas tão banais como seja ires comigo à lavandaria. Mas sei que quando
o soubeste e partiste uma primeira vez, a verdade era outra, e muito pior para
mim. Houve essa noite em que soube que já não podias partir sem estragos, que
já não suportaria perder-te sem dor.
(…)
Só tu eras o contrário do que devias ser e encalhei em ti como uma naufraga.
Bebias sempre demasiado. Alternavas as palavras mais carinhosas com uma
violência despropositada. Fazias-me chorar. Aprendeste depressa demais todos os
segredos do meu prazer e abusavas deles. A tua ideia do futuro era a de um
planeta só habitado por loucos e criminosos. Confessavas muitas vezes que o
nosso encontro tinha de ser breve para se manter belo. E enquanto durava ias
estragando tudo.
Sei
agora que o que me fascinava em ti era a tua desilusão. Ganharias dinheiro
facilmente, mas recusavas-te. Nunca falavas de outras mulheres, o que era pior
ainda. Os teus olhos ajudavam ao mistério. (…) Assustavam-me as tuas bruscas
mudanças de humor, as tuas súbitas ausências. Nunca te vi ler um livro. A vez
que te vi entusiasmado foi diante da televisão a ver um jogo de futebol.
Já
não escrevo cartas. Tenho a certeza de que não as abres e que as deitas para um
canto junto com as contas por pagar e a publicidade de enciclopédias. Gasto
demasiado dinheiro a mandar-te telegramas. Perdi toda a vergonha. Suplico-te
que voltas. Ofereço-me como escrava. “Faz de mim o que quiseres”. E tu não
fazes nada. Se ao menos tivesses medo de mim, como tive de ti, e o perdi.
Tu
tentaste seguir-me, mas depressa deixaste de me ver. Muito quieta ouvia a tua
voz a chamar por mim. Eu sei que estavas assustado. A tua voz traía-te. Gosto
de me lembrar dessa voz a chamar por mim. Foi a única vez que te senti meu.
Adio
tudo tanto quanto posso. Deixo as coisas mais simples por fazer. O atendedor
automático regista o que, ao fim do dia, apago sem ouvir. Fico horas dentro da
banheira a ouvir o mesmo lado do mesmo disco e tu sabes qual é. Envelheço
muito. Não sabia eu isto podia acontecer. Começo a odiar-te, o que não me livra
de ti.
Também
sabia ser terno e atencioso. (…) Sabias levar-me à felicidade para depois
melhor sentir a tua distância gelada, a tua crueldade física. Muitas vezes
preferi que me batesses a que me deixasses assim, e disse-to.
Fazias-me
sentir uma menina, e depois uma estranha, mais tarde um bicho. Mas nunca era
eu. Não me reconhecia nas poucas palavras que dizias de mim. Rias-te de mim. Eu
nunca me ri de ti.
Tive
hoje um apetite que não soube identificar. Houve qualquer coisa que procurei e
que não encontrei. Pouco a pouco volto a mim. Abro as janelas e deixo entrar o
vento e sabe-me bem. Mais tarde ou mais cedo serás uma recordação, nada mais.
Não depende sequer de mim. É uma coisa fisiológica. Desculpa-me. Se tivesse
mãos nestas coisas não seria assim.
(…)
Quando não sabias inventavas. Não havia amor possível, dizias, o tempo não
deixava. Não acreditavas. A vida não é uma coisa que se deseje a alguém,
insistias. Fui eu quem disse que tinha de partir, que já não aguentava. E foste
tu que fugiste, cobardemente, sem te despedires, sem nada deixares a não ser as
duas leves marcas no meu corpo que, durante semanas, me escondi.
Onde
estiveres não penses em
mim. Deixa-me de todas as maneiras, as mais subtis. Tem muito
cuidado com os cigarros, sobretudo não adormeças a fumar. Sinto uma paz grande
que me vem pouco a pouco agarrar. Estou cansada. Vou dormir e quando acordar tu
já a não existirás em sítio algum dentro de mim. Juro."
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