quinta-feira, abril 19, 2012

A Sombra dos Corpos


    A porta entreaberta deixa sair um rasto de luz que me mostra o caminho até ti. O chão ganha tonalidades que nunca antes tinha reparado, as paredes ganham sombras de objectos expostos, agora que a luz as começa a tocar. Eu fico indecisa, sem saber se devo entrar ou simplesmente esperar aqui por ti mas a vontade de te ter perto é maior do que esta luz que começa a brilhar pela manhã. Caminho descalça, tentando não fazer um único ruído para não dares pela minha presença. Atrás de mim apenas fica este corredor vazio e mal iluminado, com pequenas poeiras do pó a subirem depois das minhas pegadas.

    Abro a porta com um gesto suave da mão, como se fosse à descoberta de um tesouro e espreitasse para dentro de algo à procura de alguma coisa perdida no tempo. Sigo o movimento dela e olho então a janela mal fechada que deixa entrar os primeiros raios de sol. A roupa no chão, a secretária cheia de livros e papéis soltos, o rádio ligado a piscar para voltar a tocar a música que há muito terminou, uma fotografia da tua infância, um espelho que mostra o meu reflexo curioso, juntamente com o teu corpo estendido em cima da cama, completamente esticado de barriga para baixo com um braço debaixo da almofada, enquanto o outro se estende por debaixo do lençol que apenas te tapa da cintura para baixo.

    Entro e afasto tudo aquilo que me impeça chegar até ti. Aproximo-me, mas não o suficiente para me sentires chegar perto de ti porque não te quero acordar. Olho-te e sorrio ao ver o teu rosto adormecido e esse corpo suave e selvagem, agora tão quieto como uma estátua. Ganho coragem e, aos poucos, vou-me aproximando. Afasto o cabelo da tua cara e contemplo o rosto divino, essas feições joviais com a barba por fazer, tornando-te mais homem mas igualmente uma criança adormecida. Afasto-me e sento-me na cadeira em frente à secretária.


     Escrevo e contemplo-te. O corpo iluminado pela luz que invade este quarto, criando uma sombra na parede, reflectindo aquilo que não és mas aparentas ser. O teu corpo gracioso ganha mais cor e novos tons contrastam com o encanto do teu ser. Ninguém diria que, por trás deste corpo angelical está uma mente rebelde e um espírito selvagem… E as minhas atenções voltam-se para o teu rosto, onde os teus lábios semi-abertos parecem chamar por mim. Lábios que, sempre que podem, sussurram palavras soltas ao meu ouvido e me transportam para um mundo de prazer e arrepios, guiados por um puro sentimento de adoração e divindade.

  Olho para a secretária e no meio dos papéis sem fim encontro uma fotografia nossa: um beijo dado ao luar de uma noite de verão. A vontade de querer gravar este momento para sempre cresce dentro de mim e ainda mais a vontade de parar o tempo para te poder ver sempre assim, desta forma divina. É então que acordas, enquanto pouso a fotografia e te sorrio. Ficas surpreso com a minha presença mas sem perder tempo sorris e levantas o lençol que te tapa, convidando-me a entrar no teu ninho aconchegante, como se nunca de lá devesse ter saído.

    Antes de te fazer a vontade, fecho mais a janela, sem a fechar totalmente, entrando uma claridade menos forte mas que, ainda assim, cria sombras da nossa presença. Sem pudor e concentrando-me no teu olhar mal acordado que me fita sem pestanejar, vou-me despindo, peça a peça, calmamente, sem pressa, saboreando o movimento do teu olhar que segue cada gesto, aumentado o teu desejo por este corpo que igualmente deseja o teu. Dispo-me, pensando que és tu que o fazes, pensando como o mundo lá fora é tão pequeno neste quarto e como tudo se resume a ti.


   Uma lágrima corre pelo canto dos meus olhos e tu não perdes tempo em ficar à minha espera. Vens até mim, aconchegando-me nos teus braços, comovido com o gesto, completamente entregue ao meu corpo. Levas-me nos teus braços para debaixo dos lençóis, juntando-te a mim, abraçando-me e beijando-me como se não houvesse futuro ou simplesmente como se nada mais importasse. As nossas sombras transformam-se, ficam cada vez mais juntas, como nós, acabando por se tornar apenas numa pequena sombra, onde a escuridão do prazer a completa.



Ana de Quina F.

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