A porta entreaberta
deixa sair um rasto de luz que me mostra o caminho até ti. O chão ganha
tonalidades que nunca antes tinha reparado, as paredes ganham sombras de
objectos expostos, agora que a luz as começa a tocar. Eu fico indecisa, sem
saber se devo entrar ou simplesmente esperar aqui por ti mas a vontade de te
ter perto é maior do que esta luz que começa a brilhar pela manhã. Caminho
descalça, tentando não fazer um único ruído para não dares pela minha presença.
Atrás de mim apenas fica este corredor vazio e mal iluminado, com pequenas
poeiras do pó a subirem depois das minhas pegadas.
Abro a porta com um gesto suave da
mão, como se fosse à descoberta de um tesouro e espreitasse para dentro de algo
à procura de alguma coisa perdida no tempo. Sigo o movimento dela e olho então
a janela mal fechada que deixa entrar os primeiros raios de sol. A roupa no
chão, a secretária cheia de livros e papéis soltos, o rádio ligado a piscar
para voltar a tocar a música que há muito terminou, uma fotografia da tua
infância, um espelho que mostra o meu reflexo curioso, juntamente com o teu
corpo estendido em cima da cama, completamente esticado de barriga para baixo
com um braço debaixo da almofada, enquanto o outro se estende por debaixo do
lençol que apenas te tapa da cintura para baixo.
Entro e afasto tudo aquilo que me
impeça chegar até ti. Aproximo-me, mas não o suficiente para me sentires chegar
perto de ti porque não te quero acordar. Olho-te e sorrio ao ver o teu rosto
adormecido e esse corpo suave e selvagem, agora tão quieto como uma estátua.
Ganho coragem e, aos poucos, vou-me aproximando. Afasto o cabelo da tua cara e
contemplo o rosto divino, essas feições joviais com a barba por fazer,
tornando-te mais homem mas igualmente uma criança adormecida. Afasto-me e
sento-me na cadeira em frente à secretária.
Escrevo e contemplo-te. O corpo
iluminado pela luz que invade este quarto, criando uma sombra na parede,
reflectindo aquilo que não és mas aparentas ser. O teu corpo gracioso ganha
mais cor e novos tons contrastam com o encanto do teu ser. Ninguém diria que,
por trás deste corpo angelical está uma mente rebelde e um espírito selvagem… E
as minhas atenções voltam-se para o teu rosto, onde os teus lábios semi-abertos parecem chamar por mim. Lábios que,
sempre que podem, sussurram palavras soltas ao meu ouvido e me transportam para
um mundo de prazer e arrepios, guiados por um puro sentimento de adoração e
divindade.
Olho para a secretária e no meio dos
papéis sem fim encontro uma fotografia nossa: um beijo dado ao luar de uma
noite de verão. A vontade de querer gravar este momento para sempre cresce
dentro de mim e ainda mais a vontade de parar o tempo para te poder ver sempre
assim, desta forma divina. É então que acordas, enquanto pouso a fotografia e
te sorrio. Ficas surpreso com a minha presença mas sem perder tempo sorris e
levantas o lençol que te tapa, convidando-me a entrar no teu ninho
aconchegante, como se nunca de lá devesse ter saído.
Antes de te fazer a vontade, fecho
mais a janela, sem a fechar totalmente, entrando uma claridade menos forte mas
que, ainda assim, cria sombras da nossa presença. Sem pudor e concentrando-me
no teu olhar mal acordado que me fita sem pestanejar, vou-me despindo, peça a
peça, calmamente, sem pressa, saboreando o movimento do teu olhar que segue
cada gesto, aumentado o teu desejo por este corpo que igualmente deseja o teu.
Dispo-me, pensando que és tu que o fazes, pensando como o mundo lá fora é tão
pequeno neste quarto e como tudo se resume a ti.
Uma lágrima corre pelo
canto dos meus olhos e tu não perdes tempo em ficar à minha espera. Vens até
mim, aconchegando-me nos teus braços, comovido com o gesto, completamente
entregue ao meu corpo. Levas-me nos teus braços para debaixo dos lençóis,
juntando-te a mim, abraçando-me e beijando-me como se não houvesse futuro ou
simplesmente como se nada mais importasse. As nossas sombras transformam-se,
ficam cada vez mais juntas, como nós, acabando por se tornar apenas numa
pequena sombra, onde a escuridão do prazer a completa.
Ana de Quina F.
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