quinta-feira, fevereiro 07, 2013

O Jardim das Memórias

A folha caia lentamente, como um pano desgastado pelo tempo que se havia escapado de algum sitio, onde já ninguém habitava. Era mais uma folha que se juntava ao monte que se começava a espalhar com a força do vento. O ar era frio, gelado e forte o suficiente para espalhar cada uma por recantos escondidos. O céu continuava cinzento, o que contrastava com o verde da relva por cortar e com os tons amarelados das folhas que teimavam em cair, ora sozinhas, ora com a ajuda do vento. Eram horas certas daquele jardim receber a visita do mesmo homem que há mais de quarenta anos passava alá as suas tardes.

Vinha acompanhado de uma bengala preta, da cor do seu casaco que o abrigava do frio, tal como o seu cachecol cinza. Sem pressa, sabia que chegava à hora certa. O relógio no seu pulso, há muito que tinha parado e a pilha acabou por não ser trocada. Já não precisava mais daquele tempo para saber o tempo que tinha para si. Sentou-se no banco gelado de madeira desgastada. Olhava em volta e via o mesmo parque de há quarenta anos atrás. Respirava fundo o ar gélido do dia e fechava os olhos para ver e ouvir com maior nitidez aquilo que agora não tinha.

Conseguia ouvir na perfeição o som do piano que vinha da janela do prédio em frente ao jardim. Todos os dias, ao final da tarde, sentava-se de propósito no banco de madeira para ouvir aquela música que contrastava com a gritaria dos miúdos que brincavam e dos grupos de idosos que faziam batota nos jogos de cartas. Bastava-lhe ouvir uma música, para o seu dia ficar mais alegre até ao dia em que a sua curiosidade o matou e para isso, esqueceu o tempo e ficou sentado até ao cair da noite, a ouvir aquele piano que parecia não querer parar. Foi então que a viu pela janela, uma jovem de cabelos longos e traços morenos, que o olhou discretamente e lhe sorriu.

Foi então que aquele hábito se tornou num vício, como uma droga e como o destino não brinca, houve um dia em que tudo mudou. Há hora certa, o piano não tocava, o barulho parecia ainda mais ensurdecedor do que antes e o desalento aumentava. E a ingratidão do tempo, colocou-lhe à sua frente a rapariga que deveria estar a tocar piano e que se tinha atrasado, com lágrimas nos olhos. Era um dia frio de inverno e quando a viu, quis aquece-la com um abraço carinhoso que ela não teria recusado. Ela não o viu mas ele fez-se afirmar, pegando-lhe no braço e chamando a sua atenção. Ela então reparou naquele sorriso meigo e preocupado de um desconhecido que há muito conhecia o seu talento e há muito desejava cruzar-se com ela. Não foram precisas palavras, apenas um lenço tornou aqueles dois seres em pequenas almas gémeas e ela foi, a partir daquele dia, tocar para ele.

Abria agora os olhos e sorria com uma lágrima ao canto do olho, como se ainda hoje ouvisse aquele piano e estivesse a ver o seu sorriso envergonhado. Ela já tinha partido e ele sabia que ainda a tinha dentro de si e aquele era agora o espaço das suas memórias, das suas alegrias, das suas tristezas, das suas vidas, onde tudo tinha sido posto à prova, menos o seu amor. O velho levantou-se com o mesmo ar altivo de sempre, embora com o aperto do tempo dentro do seu coração. Já não precisava das horas, já não precisava de nada mais, apenas viver como as folhas daquelas árvores, ao sabor do vento, sem passado nem presente. Da mesma maneira que havia chegado, também partiu e no dia seguinte estaria ali há mesma hora, se o seu destino assim o quisesse.


Ana de Quina F.

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