sábado, maio 17, 2014

Um livro, uma carta e um lenço

A noite estava calma e nada previa o desassossego que ia no coração de Matilde. A lua estava cheia e, de tempos em tempos, escondia-se por trás de pequenas nuvens que teimavam em esconder o seu brilho. Ao chegar a casa, junto à porta, encontrou a sua morte: um livro, uma carta de despedida e um lenço preto. Abriu o livro e viu a sua letra, as suas palavras "Fica querido com um beijo que não acabe". A carta nem a abriu. Sabia cada linha, cara paragrafo, de cor, de trás para a frente. Tinha sido escrita numa noite como aquela, ao sabor da saudade de um tempo que tinha passado mas não acabado. O lenço ainda tinha o seu perfume, agora misturado com o perfume dele. Estava meticulosamente enrolado, envolvendo aqueles objetos... mas ao desenrolar algo caiu. Um fio de prata, com um pequeno coração. O seu coração. O mesmo que lhe tinha dado como prova dos seus sentimentos. Que ele tinha aceite com a mesma rapidez que ela lho tinha dado.

Tentava, contra todos os esforços do seu corpo, não chorar e pensar no que se tinha passado para aqueles objetos estarem ali. Não eram mais dela, eram de Rodrigo e não os aceitava de volta. A sua angústia tornou-se em revolta e a sua revolta em medo. Sem conter mais as lagrimas, colocou o fio e pegou no telefone. Ligou uma, duas, três... e gritou em desespero por não haver mais sinal para lá daquela linha invisível que separava dois corpos, duas almas. Agarrou no livro, na carta e no lenço, meteu-se dentro do carro e fugiu. Não sabia para onde ir, não sabia para onde Rodrigo teria ido, apenas queria fugir. Tentou ligar mais algumas vezes, novamente sem resposta. Seria o fim? Teria Rodrigo desistido de tudo? Até da própria vida?

Matilde lembrou-se então do local onde costumavam ir juntos, aos cair da noite, ficando abraçados no escuro, enquanto viam a cidade viva por baixo deles. Aquele mar de luzes sem fim aconchegava-os como um sonho, acalmando os seus medos, alimentando os seus desejos. Dali de cima tudo parecia possível mas naquele momento parecia-lhe apenas um precipício. A sua última opção foi ligar para o irmão de Rodrigo, que não tardou em aparecer. Foi dar com Matilde sentada no chão junto ao carro, abraçada àqueles objetos como se lhe tivessem roubado todos os sentidos. Ao vê-lo, ela abraçou-o com força, pedindo em silêncio que não a deixasse. Nuno não sabia o que fazer, não sabia o que se passava e assustou-se ao vê-la naquele estado. Tentou acalmá-la, tentou consolá-la mas quanto mais falava, mais ela chorava.



Sentaram-se então junto ao carro, vendo a cidade lá em baixo, completamente adormecida aos seus olhos. Como desabafo, Matilde confessava-se. Não escondia o quanto Rodrigo era importante para si, o quanto se sentia livre com ele, o quanto se sentia protegida nos seus braços ao fim do dia. Mal ela sabia que a alguns metros dali era Rodrigo que assistia ao seu estado, confirmando o seu amor num desabafo inesperado, sentido-se agora culpado pelo seu estado. Decidiu então sair da escuridão, aparecendo do seu lado, como se tivesse renascido da noite. Matilde não sabia se havia de sorrir ou de lhe bater mas não tardou em abraça-lo, desconsolada. Nuno retirou-se e Rodrigo desculpou-se. Sabia agora que tinha agido por impulso e sem pensar. Nunca tinha pensado vê-la naquele estado por si. Limpou-lhe as lágrimas com ambas as mãos e afastou-lhe o cabelo para trás das orelhas, enquanto ela olhava para o chão, escondendo as lágrimas que não paravam de cair. Levantou-lhe o rosto e beijo-a de forma apaixonada, num beijo longo, ternurento e carregado de sentimentos que nunca antes tinha sentido. Aos poucos, Matilde foi-se acalmando.

"Desculpa...", disse Rodrigo, envergonhado por ter sido tão estúpido ao não acreditar nos sentimentos dela. Tinha testado o seu amor e tinha chegado ao limite. "Pensei que te tinha perdido...", confessou Matilde, ainda com uma dor no peito que não sabia de onde vinha. Só os abraçados dele a acalmavam, só a sua voz lhe dava a paz que tanto procurava. "Estou aqui... para sempre!", concluiu Rodrigo, abraçando-a com força, sem a querer deixar escapar. Não se aperceberam do tempo que ficaram assim mas o que era o tempo junto de todo aquele sentimento? O que era o tempo comparado com aquela intensidade de vida? Antes de entrarem no carro, ela devolveu-lhe as suas coisas, tirou o fio e meteu-lho ao pescoço. "Guarda isto com a tua vida...", disse Matilde entregando-lhe o livro, a carta e o lenço, enquanto Rodrigo lhe sussurrava ao ouvido "A minha vida és tu!". Ambos deixaram-se ficar mais um tempo naquele local, enquanto lá em baixo ninguém desconfiava no tormento daquela noite. Nenhuma só alma daquela cidade entendia aquelas duas, unidas por um lenço transparente que os protegia contra qualquer tempestade.

Ana de Quina

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