domingo, novembro 23, 2014

Um dia de chuva...

A chuva caia de forma constante lá fora. Cada gota que se amontoava no vidro da janela, transformava-se num pequeno rio, que ao mesmo tempo separava pequenas gotas umas das outras. Conseguia ver o mundo ao contrário no reflexo de cada uma. Enquanto elas se uniam e separavam, no interior daquela casa velha em frente, a sua inquilinafazia e desfazia a renda vezes sem conta, enquanto eu apenas sabia encher linhas com palavras soltas.

Ela era uma senhora idosa, de cabelos grisalhos e longos, de um cinzento brilhante que contrastava com as nuvens chuvosas do exterior.Embora já tivesse uma certa idade, ainda mantinha um espírito jovem, pelo menos no olhar, que era doce e meigo. Sempre que nos cruzávamos na janela, tinha um sorriso para me dar. Enquanto fazia a sua renda, perdia-se na imensidão dos seus pensamentos. Acredito que voltava atrás no tempo, como forma de refazer o que tinha ficado mal feito, tendo assim oportunidade de desfazer a sua vida as vezes que fossem precisas para voltar a deixar tudo como deveria ter ficado. Cada regresso a um ponto mal feito, era mais uma saudades ou mais um engano que apagava dentro de si.

De vez em quando, confirmava se ainda chovia. estava tão perdida nas suas memórias que certamente se esquecia de ouvir a chuva. Ao contrário dela, não podia desfazer nada. Tudo o que escrevia, ficaria marcado e vincado em cada folha. Podia riscar, rasgar ou até queimar, mas jamais poderia desfazer as voltas que a caneta dava na folha e a tinta que deixava para trás. Para mim, só existia o caminho para a frente. Tentava imaginar como teria sido a sua vida. Não me parecia uma típica mulher da aldeia, amargurada pela vida, mas sim uma senhora que se tinha submetido ao próprio tempo e que há muito se tinha transformado na mulher que era. Acredito que ainda sonhasse, caso contrário não daria os seus suspiros constantes, nem sorriria tantas vezes ao fazer coisas tão banais como meter a agua a ferver para fazer o seu chá antes de ir à missa. Era uma mulher de poucas palavras mas com um bom sentido de observação.


Quase de certeza que também a intrigava a minha escrita e se questionaria muito sobre o que fazia, mas nunca me tinha perguntado nada. Observava agora que ela apenas se dedicava à renda nos dias de chuva. Era estranho, já que o tempo não permitia ter a claridade de um dia de sol, o que me deixava com mais e mais certeza de que aquele era o seu momento de saudade.

Gota a gota, ponto a ponto, ia desvendando os mistérios da sua própria vida. Mal sabia ela que, gota a gota, palavra a palavra, era eu quem registava os seus últimos momentos a recordar um passado longínquo, cheio de imperfeições como a sua pele agora enrugada. mas ela sorria, com os lábios e o olhar, e eu escrevia, tentando adivinhar os seus pensamentos, tentando adivinhar uma vida que não vi... e lá fora chovia, calma e pausadamente, sem pressa, coisa que nenhuma de nós tinha.

Ana de Quina (2014)

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