A chuva caia de forma constante lá fora. Cada gota que se amontoava no vidro da janela, transformava-se num pequeno rio, que ao mesmo tempo separava pequenas gotas umas das outras. Conseguia ver o mundo ao contrário no reflexo de cada uma. Enquanto elas se uniam e separavam, no interior daquela casa velha em frente, a sua inquilinafazia e desfazia a renda vezes sem conta, enquanto eu apenas sabia encher linhas com palavras soltas.
Ela era uma senhora idosa, de cabelos grisalhos e longos, de um cinzento brilhante que contrastava com as nuvens chuvosas do exterior.Embora já tivesse uma certa idade, ainda mantinha um espírito jovem, pelo menos no olhar, que era doce e meigo. Sempre que nos cruzávamos na janela, tinha um sorriso para me dar. Enquanto fazia a sua renda, perdia-se na imensidão dos seus pensamentos. Acredito que voltava atrás no tempo, como forma de refazer o que tinha ficado mal feito, tendo assim oportunidade de desfazer a sua vida as vezes que fossem precisas para voltar a deixar tudo como deveria ter ficado. Cada regresso a um ponto mal feito, era mais uma saudades ou mais um engano que apagava dentro de si.

Quase de certeza que também a intrigava a minha escrita e se questionaria muito sobre o que fazia, mas nunca me tinha perguntado nada. Observava agora que ela apenas se dedicava à renda nos dias de chuva. Era estranho, já que o tempo não permitia ter a claridade de um dia de sol, o que me deixava com mais e mais certeza de que aquele era o seu momento de saudade.
Gota a gota, ponto a ponto, ia desvendando os mistérios da sua própria vida. Mal sabia ela que, gota a gota, palavra a palavra, era eu quem registava os seus últimos momentos a recordar um passado longínquo, cheio de imperfeições como a sua pele agora enrugada. mas ela sorria, com os lábios e o olhar, e eu escrevia, tentando adivinhar os seus pensamentos, tentando adivinhar uma vida que não vi... e lá fora chovia, calma e pausadamente, sem pressa, coisa que nenhuma de nós tinha.
Ana de Quina (2014)
Sem comentários:
Enviar um comentário