Já tinha idade para abandonar o balcão mas não conseguia. Já tinha conhecido pais de pais, filhos de filhos e ate netos de netos. Tinha visto muitas amizades a começar e outras tantas a acabar, alguns amores correspondidos e outros por corresponder, famílias a encontrar-se e as suas despedidas... já tinham passados mais anos do que devia mas o que ninguém sabia era que o que me mantinha atrás deste balcão não eram eles e muito menos esta vida de café, era sim o meu sonho! Um sonho que há anos me dava vida.
Nas minhas horas vagas via as prateleiras despidas de garrafas e vestidas de livros de todas as cores, tamanhos e feitios, pronto a abrir e ser usados por aqueles que pediam café. Imaginava crianças a correr por ali dentro a gritar para lhes ler a próxima história de mundos que apenas iriam conhecer nas suas cabeças, mas que certamente iriam passar de pais para filhos e netos. Imaginava as janelas cobertas de luzes de natal durante todo o ano, a porta de alumínio trocada por uma porta de madeira devidamente trabalhada, com um sininho que tocava ao entrar. As mesas cinzentas e escuras seriam pintadas pelas cores do arco-iris e o ar pesado e soturno seria trocado por um ar alegre misterioso.
Via as paredes repletas de prateleiras com livros e, num recanto, ficaria um espaço especial para os visitantes que quisessem deixar alguma sugestão ou simplesmente gostassem de por aqui ter passado, tal como eu gostava de estar nele no meu sonho. Ouvia muitas crianças em corpos adultos a dizer "Lembras-te da livraria do avô Simão?", com um tom de saudades e um brilho de alegria no olhar. Isso sim, seria uma vida feliz, saber que tinha influenciado a vida daquelas crianças agora adultos, passado valores e ensinado coisas que os pais já não tinham tempo... tudo através de histórias de clássicos, aventuras, romances, poesias e provas de amizade, como aquele grupo de crianças de olhos esbugalhados que me ouviam com mais atenção do que as ordens dos pais. Agradava-me a ideia de saber que era eu a razão dos seus sonhos à noite e das suas ansiedades do dia acabar para regressarem ali para me ouvir.
No lugar da televisão teria um rádio a tocar música, para tornar a livraria num lugar ainda mais mágico. Seria como uma loja de doces para crianças e um refúgio para os adultos que, como eu, gostavam de fugir da sua própria realidade. Eu seria o Avô Simão das Histórias, com a minha barba já da cor da neve, pele enrugada e com força para segurar um livro grosso em vez de chávenas manchadas pelo café e pelo próprio tempo, em vez de uma bandeja cheia de desilusões e desenganos, em vez de copos desesperados de vinho, cheios de mágoas de sonhos há muito esquecidos.
Mesmo tendo já passado muito tempo e já trabalhar de uma forma mecânica, seguindo um compasso de uma música à muito esquecida, conhecendo gostos e manias daqueles que me visitavam para matar o tédio do seu próprio tempo, continuava a sonhar. Ninguém me poderia roubar o meu mundo dentro do próprio mundo. Só mesmo a morte. E nem mesmo essa me iria conseguir fazer parar de sonhar. Agora, com esta idade, conseguia vê-la a entrar pelo café, a entregar-me, não a chave do paraíso, mas a da minha livraria e iria acompanhar a morte com um abraço por me dar finalmente a chave para o meu sonho.
Foi então que encontraram o avô Simão deitado ao pé do balcão, com um sorriso nos lábios e os olhos serrados, num sono profundo. Numa mão agarrava a chave do café, onde havia trabalhado toda a sua vida, enquanto na outra abraçava o seu livro favorito, aquele que acabava sempre por ler nas horas vagas, de cada vez que se encontrava sozinho. A história de uma criança que ficava a ler um livro, enquanto o pai tomava café numa Taberna dos Sonhos Perdidos, numa aldeia quase isolada do mundo, que mais tarde acabaria por transformá-la numa livraria, passando de geração em geração. Tinha sido aquele livro que tinha alimentado o lado sonhador e criança do velho avô Simão.
Ana de Quina F.
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