sexta-feira, agosto 08, 2014

Hora de Escrita

Depois de um ano atrás do balcão e ficar a conhecer pessoas num contexto completamente distinto daquele que estava acostumada, surgiu-me a ideia de começar a escrever contos inspirados em algumas "personagens" que frequentavam aquele espaço, sobre a perspectiva de um homem de idade que passara toda a sua vida dentro de um café. Na verdade inspirei-me em "personagens tipo", ou seja, aquelas situações ou pessoas que parece que, por mais anos que passem, vão sempre acontecer ou aparecer. Gerações de filhos, pais e netos com os mesmos vícios ou as mesmas rotinas. Ao criar algo deste género será como caracterizar um povo ou tradições até. Fazer uma espécie de caricatura sátira de situações comuns, que muitas vezes pode ser mal interpretado por quem lê e não olha mais além da verdadeira essência da caricatura ou da própria critica. Será algo arriscado, mas qual é o desafio que não comporta riscos? Deixo então um excerto daquela que será a introdução deste novo projeto.

"Este podia ser mais um livro de memórias, mais um dos muito que acabo por escrever ás escondidas atrás do balcão enquanto ninguém presta atenção em mim. Na verdade, quase que podia escrever um romance por cada pessoa que entra por aquela porta, real ou ficcional, até com as suas próprias vidas, já que muitas vezes confundem as suas vidas com a dos outros, cruzando realidades de forma a criar outra, até para si próprios.

Sempre me lembro de ter estado atrás do balcão com os meus pais e quando eles partiram fiquei encarregue do café. Todos os meus irmãos fugiram para uma vida de doutor na cidade. Eu resisti. Fiquei nesta aldeia perdida no monte, agarrado aos meus sonhos, à minha escrita e aos meus livros. Não me arrependo. Hoje ninguém me visita e alguns também já partiram. Aqui dentro, todos me tratam por Tio Simão, quando já tenho idade para ser avô. Perdi a conta dos anos, quase até dos que tenho, mas ainda aguento este ritmo. Talvez isso aconteça por os dias aqui serem sempre iguais, as rotinas serem sempre as mesmas, as pessoas sempre com os mesmos feitios. Apesar disso, todos os dias há coisas novas: situações inesperadas, histórias novas para contar, notícias de fora que demoram a chegar mas que logo se sabem.

Uma das novidades foi a chegada de Adriana, uma rapariga jovem da terra, que tinha ido estudar para fora e que tinha regressado de forma inesperada. Fiquei surpreso quando me pediu trabalho, já que era alguém com estudos que nunca imaginara atrás de um balcão, mas a verdade é que não podia desperdiçar a sua ajuda, por isso aceitei. Também não estava á espera da rapidez com que nos começamos a entender. Fomos descobrindo que tínhamos os mesmos gostos: a leitura e a escrita. Sempre que terminava um livro, trazia-mo e enquanto ela tomava as rédeas do café, eu ficava num canto a ler. Fiquei a perceber a quantidade de coisas que eu não conhecia e senti que, aos poucos, aquela rapariga me estava a dar uma nova vida. Talvez por isso me tenha apercebido das vidas mascaradas de muitos que por ali passavam e decidira escrever este livro de contos. E como já disse, este é diferente de tudo aquilo que algum dia havia escrito.



Peguei em pequenas situações de café e comecei a imaginar como seriam as suas vidas fora destas quatro paredes. Podem ter sido destorcidas muitas realidades mas acredito que tenha acertado em muitos dos seus destinos. Ao descobrir este caderno de apontamentos, também a Adriana me ajudou e começou também ela a escrever. Muitas vezes ela começava e eu terminava, ou vice versa. Divertia-mo-nos com a ideia de destruir vidas perfeitas e aperfeiçoar vidas cheias de erros e falhas. Era a oportunidade de todos terem a vida que realmente desejavam, mas que não iam passar das paginas de um caderno velho e completamente rabiscado da primeira à última página.

Começava a entender porque muitos escritores de antigamente costumavam reunir-se em cafés e discutir aí o destino da sua escrita. Não haverá local mais complexo no mundo do que um café: a correria de pessoas apressadas, que entram e desaparecem como que por magia, em contraste com aquelas que permanecem dentro deste espaço; aquelas almas que jamais iremos ver na vida ou quem sabe, nos cruzemos um dia mais tarde; as disputas amorosas, os desgostos aos balcão, as discussões familiares, as brigas inúteis por causa de um jogo de cartas; o início de uma amizade e o fim de outra... um infinito mar de mundos fragmentados num pequeno espaço e num curto momento, acrescentado à nossa imaginação.

Aqui os dias parecem iguais e, embora o tempo pareça não passar, quando damos por nós, já mais um ano ficou para trás. Contudo, adoro estar rodeado de jovens e, às vezes, deposito muitas esperanças neles. Mais do que devia. Gostava que fossem mais ousados, que quisessem um destino diferente de todos nós que acabamos por ficar para trás, que corressem atrás dos seus sonhos, já que têm mais oportunidades do que aquelas que eu tive, que estudassem e que se interessassem, de forma a ir embora, conhecer o mundo... mas no fim, que voltassem para mudar aquilo que eu e muitos como eu, não conseguimos. Mas mesmo gostando da sua companhia, não me conformo com as suas atitudes tão passivas. Com tanta rebeldia que alguns têm no corpo, custa-me que não a usem para quererem, pelo menos, mudar as suas vidas. Talvez se arrependam mais tarde de não terem feito nada antes, como eu me arrependo.

Embora não pareça, sou feliz com a vida que tenho. Gosto deste lugar pacato, de tudo o que me rodeia e deste espaço que rapidamente se tornou a minha casa. A simplicidade daquilo que me rodeia tornou-se no essencial para a minha vida e os livros acabaram por ser a minha verdadeira companhia. Por isso mesmo vos quero levar até ao meu café dos sonhos, onde a realidade nem sempre é o que parece e onde a imaginação nos pode levar para um mundo de sonho."


No café dos sonhos - Ana de Quina

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