sábado, outubro 11, 2014

O velho do Semáforo

Ele é alto, magro, tem a barba por fazer e carrega um olhar vazio e distante. Os carros amontoam-se um a um junto ao sinal vermelho, mas enquanto todos param, ele começa a andar. O que para uns é apenas um compasso de espera, para outros é uma oportunidade de enganar o tempo. As suas mãos velhas e encardidas carregam um bocado de papelão com umas letras escritas. Sim, algo está lá, uma mensagem, um pedido de socorro... mas ninguém lê. Ignoram aquele velho, aquele ser estranho, como também ignoram as suas próprias vidas enquanto esperam impacientemente que aquele sinal mude, nem que seja pelo simples e único facto de se poderem livrar daquela presença desagradável e desconfortante. É realmente desconfortável estar perante uma realidade tão distinta da nossa, principalmente quando nos faz sentir tão pesados nas nossas consciências.

Ninguém se pergunta quem será aquela pessoa ou ainda menos, quem terá sido? Terá família ou estará sozinho no mundo? Neste momento apenas parece uma sombra de si próprio, escondido por detrás da sua barba branca por fazer e do seu olhar sem esperanças. Sabe perfeitamente que não é bem vindo, mas ainda assim, insiste. Quem são os outros para lhe dizer o que deve ou não fazer? Quem são os outros para julgar o que não tem? E se fossem eles mesmo ali, naquela situação? Mas não sabem e muito menos o pensam, porque nem ler as suas palavras escritas naquele bocado de papel conseguem. Olham para a frente como se ali estivesse a resposta às perguntas mais estúpidas que lhes passam pela cabeça enquanto pensam "o que quer este agora?". Tudo o resto é mais importante do que olhar para o lado e olhar nos olhos daquele que passa sem pedir nada em troca.

Fico à espera a ver quem se atreve a baixar o vidro. Ninguém. Quem o faz, até pode dar um troco mas a cada dia que ali passo, pergunto-me se o troco será realmente mais importante do que uma palavra? Quem se atreverá a perguntar àquele homem um simples "Como está?". Duvido sequer que alguém tenha tempo para isso, ou não fosse aquele semáforo uma condicionante para essa situação. Na realidade, naquele caso, não passa mesmo de uma sirene de alerta e salvamento, que nos liberta e nos deixa livres assim que muda de vermelho para verde. Mas a mim, apenas me deixa a pensar que também sou mais um cobarde como eles, que prefere ignorar e partir do principio de que aquele homem é mais um mendicante que pretende enganar a todos com uma história triste e que quer enriquecer às minhas custas. Ou gastar o que diz ser para uma família, em pequenos vicios. Quem sou eu para o julgar desta forma? Quem me garante a mim que talvez quem enriquecesse mais seria eu ao ajudá-lo e ter um "bom dia" para dar, mais do que um simples troco. "Não tenho nada para si, mas tenho um minuto para saber como está!". Não faria isto uma pessoa mais rica?...

Somos tão preconceituosos com o que nos rodeia, menos connosco, principalmente quando somos os primeiros a fazê-lo. Realidades há muitas, ignorá-las é fácil, aceita-las também... mas confrontá-las cara a cara é outra história. E se fosse eu? E se fosses tu? Nunca ninguém pára para pensar nestas pequenas diferenças que nos tornam tão iguais. Seriamos à mesma dois velhos, frios e despegados, que iriam pedir algo, material ou não. E aí sim, teríamos tempo que sobrasse para pensar na vida, para pensar no que tínhamos perdido e no que podíamos ganhar, no que podíamos ter sido e no que podíamos ser, no que podíamos ter feito ou fazer... mas ainda assim consigo invejar aquele velho por comandar a vida ao seu ritmo, por ter tempo para tudo o que nós não temos, por certamente ter prazer nas pequenas coisas e não precisar de muito para ser feliz.

Ana de Quina F.

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